Texto de Fernando Catani, publicado em
www.negativoonline.comEscrevi este trecho de poema enquanto assistia a um filme sobre dança de salão: “Quando eu estiver para morrer... sei lá... toquem um tango. E depois me façam lembrar de todos eles, um por um. Como numa reviravolta de alegria e lágrimas que me fará sentir tudo o que vivi aqui nesta sala. Quando eu já tiver fechado os meus olhos, vão embora em silêncio depois de beijar os meus pés. Deixem-me lá naquele limbo do canto dos campos em que há bastante sombra e umidade. Esqueçam o caminho pelo qual me conduziram, e me deixem nu. Quando tudo sumir, tudo misturar, leiam mais alguns poemas, e deitem-se para dormir em paz”.
Tudo é poesia. Tudo que criamos para explicar o mundo é poesia. A poesia é transformar o que vemos do mundo através da imaginação, distorcendo as imagens que temos desse mundo. Isso é imaginar. Não poderíamos entender, ou melhor, conceber o mundo se não fosse nossa capacidade de diluí-lo em poesia. Até mesmo a idéia acerca da razão é poética. É em si uma poetização. Sabe-se lá o que seja razão, porque aqui neste texto não sabemos. Mas sabemos de sua idealização, de seu estado imagético que, por isso, é poesia. Poesia não é somente escrever poemas, embora estes sejam uma parte de todo o processo.
Criar explicações da vida é que é poesia. E todas essas explicações são metafóricas, e todas, poéticas. As teorias científicas são tão poéticas quanto aquele poema delirante perdido na estante empoeirada. Imaginem uma grande explosão que ainda se expande num espaço completamente indefinível. Ora, a ciência nada mais é do que a grande arte da nomeação poética. São antes de tudo grandes idéias que estão sempre em busca de explicar a si mesmas, para, ingenuamente, como é a principal característica do poema, acreditar que podem explicar o universo. São devaneios, sonhos tênues que podem tornar-se tudo, que podem existir.
Alguns são daqueles poetas hipertrofiados que, obcecados, criam coisas que são muito específicas. Mas existem os poetas que, de tão simples, não necessitam de quase nada. As religiões são sistemas poéticos de explicações. Só que, de tão elaborados, se tornaram extremamente complexos e complicados. São os poemas dos séculos sobre séculos. Quando vamos a um lugar fantasioso de determinada religião, queremos encontrar a poesia que foi elaborada ao longo de muitos anos em um mesmo ritmo. Tudo o que as idéias falam existe de uma forma abstrata que só a poesia pode literalizar em suas metáforas, em seus arquétipos. Nada é tão útil como queremos acreditar, mas tudo é uma maneira poetizada de realizar nossa imaginação.
O computador não é útil, ele é apenas uma forma de poesia, uma coisa para explicar o mundo e a nós mesmos enquanto vivemos. Não se pode explicar nada sem imagens poéticas, por isso inventamos tantas coisas líricas. Somos buscadores de explicações, e o resultado de nosso trabalho é sempre uma arrumação poética que se materializa de alguma maneira. Sem essas nossas “poetizações”, teríamos um total silêncio. É possível encontrar poesia até numa tragédia. Tornemo-la sublime. Isso não é um mal, mas nossa essência, nossa qualidade humana.
Somos poetizantes. Até aquilo que os críticos mais pedantes julgam ridículo é carregado de poesia. Quem pode julgar o efeito que alguma coisa causa em outra pessoa? Quem pode desqualificar uma situação poética somente por uma avaliação de estilo? A poesia é aquilo que nos toca, nos afeta para explicar aquilo que amamos ou odiamos. A poesia não é feita somente para os que se julgam bons. Ela pode afetar até os mais horripilantes malfeitores. Ela é indomável. Não está a serviço de ninguém. Pois é como a própria vida. Não tem garantia. É o que no mundo humano mais se aproxima do arquétipo do uno divino, está aí para todos sem nenhuma restrição.Nada pode garantir que uma beleza natural não se torne destruidora de um momento para outro. O ser humano não seria diferente daquilo que é parte. O momento da poesia é o presente. O presente é só um dia. O que aconteceu antes de acordarmos está morto e o que acontecerá depois de dormirmos é completamente imprevisível. Só se vive no presente. Só se vive durante um dia. A poesia é passar por este período e explicá-lo da melhor maneira possível. As marcas do poema da vida se perdem nas ilusões do futuro e as dúvidas das imagens somem no medo do passado. Por isso o poema é eternamente recriado por nós a cada dia. Lutamos para negar opressão da ilusão e do medo. O poema é o resultado de uma transgressão que heroicamente realizamos diante de nossa condição humana. A poesia nos fascina, e esse fascínio é sua própria essência. Ela é o exercício de viver e amar esse presente que não podemos prender porque passa a cada segundo. O poema é o registro dessa aceleração do viver que se perde sempre, dessa morte vivente que nos cerca. Não nos iludamos em pensar que descobrimos nos resultados desse impulso poético as respostas, porque não somos seres de respostas.
Somos seres de explicações eternas. Somos criadores de fluxos de explicações. Quando nos prendemos a uma explicação específica corremos o risco de perder a capacidade de criar a poética de nossa vida. E é essa mesma capacidade que procria as explicações a que nos apegamos. Mas esse apego é justamente aquilo que não é o objetivo espiritual dos poemas. Eles são somente um comunicado, uma mensagem, um álibi. Eles são uma pista do desconhecido, um vestígio para nos mantermos no caminho deste desconhecido. Porque a imensidão da vida é incompreensível simplesmente, mas o amor por ela exige explicações que nos garantam um pequeno eco que orienta um caminho delirante. As explicações na forma dos poemas humanos são esses ecos que, embora nada sejam da imensidão, nos fazem seguir num rumo de ineditismo. Por isso exigimos que o poema deva ser inédito, para se equivaler ao desconhecido. Somente o desconhecido é vivo. Quando conhecemos algo é porque já está morto. Somente o poema simula isso de uma maneira interessante para o ser humano. Quando o poema é equânime ao desconhecido, revelando não a impossível visão da sua face, mas nosso espanto em relação a ela, podemos estar felizes de que seguimos naquela pista misteriosa da eternidade insuperável. Tudo aquilo que criamos é apenas uma explicação deste impacto. Tudo o que criamos é poesia como delírio e revelação. E este é nosso único caminho para aquilo que somos realmente, mas que nunca nos será revelado totalmente. Abram bem todos os sentidos que julguem existir e busquem apenas o impulso poético de explicar isso por si mesmos. Lembrem-se de mim na próxima sessão de cinema e depois escrevam seus próprios poemas.
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